terça-feira, 13 de dezembro de 2011


O PONTO DE VISTA DA SANIDADE

A psicologia budista se baseia na ideia de que os seres humanos são fundamentalmente bons. Suas qualidades mais essenciais são positivas: a abertura, inteligência e cordialidade. Esse ponto de vista tem, é claro, suas expressões filosóficas e psicológicas em conceitos como bodhichitta (mente desperta) e tathagatarbha (local de nascimento dos iluminados). Mas essa ideia tem sua origem, em última análise, na experiência – a experiência da bondade e da dignidade em si mesmo e nos outros. Entender isso é fundamental e é a inspiração básica da prática e da psicologia budistas.

Como vim de uma tradição que dá ênfase à bondade humana, foi uma espécie de choque para mim quando descobri a tradição ocidental do pecado original. Quando estava na Universidade de Oxford estudei as tradições religiosas e filosóficas ocidentais com muito interesse, e a noção de pecado original me pareceu prevalente. Uma de minhas primeiras experiências na Inglaterra foi participar de um seminário como arcebispo Antony Blum. O seminário era sobre a noção de graça, e entramos numa discussão sobre o pecado original. A tradição budista não considera essa noção necessária em absoluto, e eu expressei esse ponto de vista. Fiquei surpreso com o quanto os participantes ocidentais se irritaram. Mesmo os ortodoxos, que talvez não enfatizem o pecado original tanto quanto as tradições ocidentais, têm esse conceito como uma pedra angular de sua teologia.

No quando desta nossa discussão, parece que a noção de pecado original não apenas permeia as ideias religiosas ocidentais como, na verdade, parece estar presente em todo o pensamento ocidental, especialmente no psicológico. Parece existir, tanto entre os pacientes quanto entre os teóricos e terapeutas, uma grande preocupação com a ideia de algum erro original que seja causa do sofrimento posterior – uma espécie de punição por esse erro. Descobre-se que há uma noção de culpa ou chaga que é predominante. Acreditem realmente ou não na ideia de pecado original – ou mesmo em Deus -, as pessoas parecem verdadeiramente acreditar que fizeram algo de errado no passado e agora estão sendo punidas por isso.

Parece que esse sentimento se culpa fundamental vem sendo transmitido de uma geração para a outra e permeia vários aspectos da vida ocidental. Os professores, por exemplo, frequentemente pensam que, se as crianças não se sentirem culpadas, não vão estudar com propriedade e por isso não vão se desenvolver como deveriam. Com isso, muitos professores acreditam que precisam exercer alguma pressão sobre as crianças, e a culpa parece ser uma das principais técnicas adotadas. Isso acontece até mesmo no nível em que se procura melhorar o desempenho na leitura ou na redação. O professor procura pelos erros: “Veja, você cometeu um erro. O que você vai fazer quanto a isso?”. Do ponto de vista da criança, aprender se torna algo baseado em não cometer erros, em tentar provar que, na verdade, você não é mau. É inteiramente diferente quando você a criança de modo mais positivo: “Veja o quanto você já melhorou, agora podemos ir ainda mais além”. Nesse último caso, o aprendizado se torna uma expressão de nossa sanidade e de nossa inteligência inata.

O problema com essa noção de pecado ou erro original é que ela funciona praticamente como um obstáculo para as pessoas. É claro que em algum momento é necessário percebermos nossas próprias deficiências. Mas, quando vamos longe demais, isso elimina qualquer inspiração e destrói também nossa visão. Desse modo, aquela noção não é muito útil, e na verdade parece desnecessária. Como já mencionei, no budismo não há ideias comparáveis à noção de pecado e culpa. É claro que existe a ideia de que se deve evitar erros. Mas não há nada que seja comparável ao peso e à inexorabilidade do pecado original.

De acordo com a perspectiva budista, os problemas existem, mas são impurezas temporárias e superficiais que encobrem nossa bondade fundamental (tathagatagarbha). É um ponto de vista positivo e otimista. Mas é preciso salientar mais uma vez que não é um ponto de vista puramente conceitual. Baseia-se na experiência da meditação e da sanidade que ela promove. Existem padrões neuróticos habituais temporários que se desenvolvem com base nas experiências passadas, mas é possível enxergar o que há por trás deles. É exatamente o que se estuda no abhidharma: como uma coisa sucede a outra, como a ação volitiva se origina e se perpetua, como as coisas de desencadeiam e crescem como uma bola de neve. E acima de tudo, o abhidharma estuda como esse processo pode ser superado pela prática da meditação.

A atitude resultante da concepção e da prática budistas é bem diferente da “mentalidade do erro”. Vivencia-se a mente como algo essencialmente puro, ou seja, saudável e positivo, e os “problemas” como imperfeições temporárias e superficiais. Esse ponto de vista não significa exatamente “livrar-se” dos problemas, mas mudar de foco. Os problemas são vistos no contexto muito mais amplo da saúde: começamos a deixar de nos apegar a nossas neuroses e a superar nossa obsessão e identificação com elas. A ênfase não está mais no problema em si, mas na base da experiência, pelo dar-se conta da natureza da mente em si mesma. Quando os problemas são vistos dessa maneira, diminui o pânico e tudo parece mais exequível. Quando os problemas surgem, em vez de serem vistos como simples ameaças, tornam-se situações de aprendizado, oportunidades de descobrir mais sobre a nossa própria mente e de prosseguir em nossa jornada.

Por meio da prática, que é confirmada pelo estudo, a sanidade intrínseca de sua mente e da mente dos outros é vivenciada repetidas vezes. Você percebe que os seus problemas não são tão arraigados. Você se percebe capaz de fazer um progresso real. Você se percebe tornando-se mais atento e consciente, desenvolvendo um senso maior de sanidade e clareza à medida que prossegue – o que é tremendamente encorajador.

Finalmente, essa ênfase na bondade e na sanidade provém da experiência de ausência do ego*, ideia com que os psicólogos ocidentais têm uma certa dificuldade. “Ausência do ego” não significa, como pensam alguns, que nada existe, uma forma de niilismo. Significa que você pode abandonar seus padrões habituais – e, quando abandona, abandona de verdade. Você não recria nem reconstrói, imediatamente depois, um novo casulo. Ao abandoná-los, você não começa simplesmente tudo de novo. Suspender o ego é ter a confiança de que você não vai reconstruir nada; vai vivenciar a sanidade psicológica e o frescor que acompanha esse não reconstruir. A verdadeira ausência do ego só pode ser experimentada plenamente com a prática da meditação.

A experiência da ausência do ego estimula uma empatia real e genuína com os outros. Você não pode ter uma empatia genuína com o ego, porque sua empatia viria acompanhada de algum tipo de mecanismo de defesa. Ao trabalhar com alguém, por exemplo, você poderia procurar atrair tudo para seu próprio território se seu próprio ego estivesse em jogo. O ego interfere na comunicação direta, que é obviamente essencial ao processo terapêutico. Por outro lado, a ausência do ego permite que todo o processo de trabalho com os outros seja autêntico, generoso, espontâneo. É por isso que na tradição budista se diz que, sem ausência do ego, é impossível desenvolver a compaixão verdadeira.

TRUNGPA, Chögyan. Muito além do divã ocidental. São Paulo: Cultrix, 2008. p 40-3

* Em inglês, egolessness (em sânscrito: nayratmya, nairatman, anatman; em tibetano bdagmed). Segundo o autor, é reconhecer ou dar-se conta de que o ego é impermanente e da ausência de uma ideia de que haja um ego. Costuma-se traduzir por “não-ego”, “não-eu”; “ausência de ego” ou “ausência de eu”; “impessoalidade”, “insubstancialidade”, “inconsistência”, “não-entidade”, “não-individualidade” ou “ausência de inexistência do eu (ou do ego)”. Nota do Revisor Técnico.



Um comentário:

Carlos G. Steigleder disse...

Achei muito interessante esse texto, por várias razões, entre elas a explicação clara e simples sobre a concepção budista de "ausência do ego".