domingo, 12 de agosto de 2012

O PRIMEIRO ACESSO AO INCONSCIENTE


[…]
          O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente como nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self – em geral começa inflingindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. Esse choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta essa frustração sobre qualquer objeto exterior. Ou seja, o ego passa a acusar Deus, a situação econômica, o chefe ou o cônjuge como responsáveis pela essa frustração.

          Algumas vezes tudo parece bem exteriormente, mas no seu íntimo, a pessoa está sofrendo de um tédio mortal que torna tudo vazio e sem sentido. Muitos mitos e contos de fada descrevem simbolicamente esse estágio inicial do processo de individuação, quando contam histórias de um rei que ficou doente ou envelheceu. Outras histórias característica são as do rei e rainha estéreis; ou a do monstro que rouba mulheres, crianças, cavalos e tesouros de um reino; ou a do demônio que impede o exército ou a armada de algum rei de seguir sua rota; ou da escuridão que cobre todas as terras; e ainda outras histórias sobre secas, inundações, geadas etc. Poderia se dizer que o encontro inicial com o self lança uma sombra sobre o futuro, ou que esse “amigo interior” aparece primeiro como um caçador que prepara sua armadilha para pegar o ego indefeso.

          Observamos nos mitos que a magia ou o talismã capaz de curar a desgraça de um rei ou de seu país são sempre alguma coisa muito peculiar. Em um determinado conto, por exemplo, “um melro branco” ou “um peixe com um anel de ouro nas guelras” podem ser os elementos necessários para a recuperação da saúde do rei. Em outro, o rei vai precisar da “água da vida”, ou dos “três fios de cabelo dourados da cabeça do Diabo”, ou ainda da “trança dourada de uma mulher” (e depois, naturalmente, da dona da trança). Seja ele qual for, o remédio para afastar o mal é sempre único e difícil de ser encontrado.

          Acontece exatamente o mesmo na crise inicial que marca a vida de um indivíduo. Procura-se algo impossível de achar ou a respeito do qual nada se sabe. Em tais momentos, qualquer conselho bem-intencionado e sensato é completamente inútil – seja para que a pessoa se torne mais responsável, para que tire umas férias, para que não trabalhe tanto (ou para que trabalhe mais), para que tenha maior (ou menor) tato humano, ou para que arranje um passatempo. Nada disso ajuda a pessoa, a não ser excepcionalmente. Só há uma atitude que parece alcançar algum resultado: voltar-se para as trevas que se aproximam, sem nenhum preconceito e com toda simplicidade, e tentar descobrir qual o seu objetivo secreto e o que vem solicitar do indivíduo.

          O propósito secreto das trevas que se avizinham geralmente é tão invulgar, tão especial e inesperado que, via de regra, só se consegue percebê-lo por meio de sonhos e das fantasias que brotam do inconsciente. Se focalizarmos nossa atenção sobre o inconsciente sem suposições precipitadas ou rejeições emocionais, o propósito há de surgir num fluxo de imagens simbólicas de grande proveito. Mas nem sempre isso acontece. Algumas vezes aparece, inicialmente, uma série de dolorosas constatações do que existe de errado em nós, e em nossas atitudes conscientes. Temos então que dar início a esse processo engolindo todo o tipo de verdades amargas.

(M L Von Franz, O processo de individuação, in O homem e seus símbolos (CGJung, org) Rio, Nova Fronteira, 2008. p 219-21)



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