O
PRIMEIRO ACESSO AO INCONSCIENTE
[…]
O
verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização
do consciente como nosso próprio centro interior (o núcleo
psíquico) ou self – em
geral começa inflingindo uma lesão à personalidade, acompanhada do
consequente sofrimento. Esse choque inicial é uma espécie de
“apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao
contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e
geralmente projeta essa frustração sobre qualquer objeto exterior.
Ou seja, o ego passa a acusar Deus, a situação econômica, o chefe
ou o cônjuge como responsáveis pela essa frustração.
Algumas
vezes tudo parece bem exteriormente, mas no seu íntimo, a pessoa
está sofrendo de um tédio mortal que torna tudo vazio e sem
sentido. Muitos mitos e contos de fada descrevem simbolicamente esse
estágio inicial do processo de individuação, quando contam
histórias de um rei que ficou doente ou envelheceu. Outras histórias
característica são as do rei e rainha estéreis; ou a do monstro
que rouba mulheres, crianças, cavalos e tesouros de um reino; ou a
do demônio que impede o exército ou a armada de algum rei de seguir
sua rota; ou da escuridão que cobre todas as terras; e ainda outras
histórias sobre secas, inundações, geadas etc. Poderia se dizer
que o encontro inicial com o self
lança uma sombra sobre o futuro, ou que esse “amigo interior”
aparece primeiro como um caçador que prepara sua armadilha para
pegar o ego indefeso.
Observamos
nos mitos que a magia ou o talismã capaz de curar a desgraça de um
rei ou de seu país são sempre alguma coisa muito peculiar. Em um
determinado conto, por exemplo, “um melro branco” ou “um peixe
com um anel de ouro nas guelras” podem ser os elementos necessários
para a recuperação da saúde do rei. Em outro, o rei vai precisar
da “água da vida”, ou dos “três fios de cabelo dourados da
cabeça do Diabo”, ou ainda da “trança dourada de uma mulher”
(e depois, naturalmente, da dona da trança). Seja ele qual for, o
remédio para afastar o mal é sempre único e difícil de ser
encontrado.
Acontece
exatamente o mesmo na crise inicial que marca a vida de um indivíduo.
Procura-se algo impossível de achar ou a respeito do qual nada se
sabe. Em tais momentos, qualquer conselho bem-intencionado e sensato
é completamente inútil – seja para que a pessoa se torne mais
responsável, para que tire umas férias, para que não trabalhe
tanto (ou para que trabalhe mais), para que tenha maior (ou menor)
tato humano, ou para que arranje um passatempo. Nada disso ajuda a
pessoa, a não ser excepcionalmente. Só há uma atitude que parece
alcançar algum resultado: voltar-se para as trevas que se aproximam,
sem nenhum preconceito e com toda simplicidade, e tentar descobrir
qual o seu objetivo secreto e o que vem solicitar do indivíduo.
O
propósito secreto das trevas que se avizinham geralmente é tão
invulgar, tão especial e inesperado que, via de regra, só se
consegue percebê-lo por meio de sonhos e das fantasias que brotam do
inconsciente. Se focalizarmos nossa atenção sobre o inconsciente
sem suposições precipitadas ou rejeições emocionais, o propósito
há de surgir num fluxo de imagens simbólicas de grande proveito.
Mas nem sempre isso acontece. Algumas vezes aparece, inicialmente,
uma série de dolorosas constatações do que existe de errado em
nós, e em nossas atitudes conscientes. Temos então que dar início
a esse processo engolindo todo o tipo de verdades amargas.
(M
L Von Franz, O processo de individuação, in O
homem e seus símbolos (CGJung, org) Rio, Nova Fronteira, 2008. p
219-21)
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